"Sei que canto. E a canção é tudo.
(...)
E um dia sei que estarei mudo:
— mais nada."
(Cecília Meireles)
(03/10/2023)
Ontem tive um dia intenso. A agenda previa duas reuniões, uma no começo e outra ao final do expediente, além de algumas tarefas que exigiam organização, atenção e, obviamente, tempo. Outras atividades foram engrossando a lista das tarefas do dia, enquanto, numa direção totalmente oposta, os checks indicadores de tarefas cumpridas iam se tornando inexistentes à medida que as horas passavam. Quando dei por mim, era o momento de ir pra casa, pois a jornada de trabalho terminara. Lembrei-me desses versos de Cecília Meireles e da melancolia presente neles. A canção, que é tudo, tornar-se-á nada ao ser consumida pelo tempo. Um dia, a voz usada para cantar estará muda, e o silêncio ocupará, solenemente, o que eram sons, melodia, canção. A melancolia está nesse preenchimento às avessas: o silêncio em lugar da canção; o vazio em lugar da voz. A certeza do mutismo é desesperadora e traz a sensação de "mais nada". O tempo não perdoa: apenas passa. O que fazer diante dessa iminência de, um dia, ficar muda?
Victor Hugo, poeta e romancista do Romantismo francês, disse, certa vez, que "A vida já é curta, mas nós tornamo-la ainda mais curta, desperdiçando tempo"; Shakespeare, também poeta e dramaturgo, engrossa o coro que afirma ser curta a vida e acrescenta: "Passar esse momento de forma vil seria um desperdício". Ambas as frases me fazem pensar, novamente, na brevidade da vida que anunciou Meireles em seus versos.
Entretanto, mais que tocar poetas e prosadores, a brevidade da vida é pauta de nossas próprias vidas: nós, seres comuns que nos perdemos em meio ao ordinário das multidões, também concordamos que a vida é breve e que precisa, portanto, ser bem aproveitada, antes que nos venham os dias maus e o tudo de nossa canção se perca. Antes que fiquemos mudos.
A Bíblia, apontada no Catecismo Maior de Westminster como a Palavra de Deus e única regra de fé e prática do cristão, trata do assunto em questão de forma modelar, ensinando-nos a viver de forma que agrade a Deus. Agradar a Deus, aliás, ensina a Escritura, é a melhor maneira de aproveitar a vida e de bem gastar o tempo. Sentenciando que a vida é um sopro e que nossos dias são como uma sombra que passa (Sl 144.4), a Escritura nos exorta a não confiar no homem, mas em Deus (Is 2.22; Tg 4.14). Assim, nossa humilde condição deve não apenas reconhecer a brevidade de nossa vida finita, mas pedir ao Senhor sabedoria para contar nossos dias com vistas a alcançarmos corações sábios (Sl 90.12).
Deus nos presenteou com um bem, lindo e perfeito, chamado tempo. Tal presente, no entanto, somente será bem usufruído se usado com sabedoria e segundo a vontade de Deus. Por mais que nomeemos nossas canções de nosso tudo, esse tudo, igualmente sujeito ao tempo, há de ser passageiro assim como nós o somos. No hiato entre a canção de hoje e a mudez de amanhã há o tempo presente. O dia que se chama hoje é nossa oportunidade de honrar a Deus por nos permitir viver cada dia e ter uma rotina para chamar de nossa. Seja ela insana ou pacata, surpreendente ou previsível, a rotina que temos representa o cuidado de Deus para conosco.
Um dia, estaremos mudos, mais nada; e essa mudez pode ser, literalmente, a ausência da voz, ou, metaforicamente, a ausência de qualquer outro "tudo" que cultivamos. Um dia, estaremos mudos: e o que é passageiro - o tempo, inclusive - terá, enfim, passado. Vivamos o hoje de modo que valha a pena. Vivamos o hoje com a voz erguida pelo que importa. Vivamos o hoje. Antes que ele não mais exista.
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