quinta-feira, 30 de maio de 2024

Dependência e Vida

 

"E vamos acreditar.
Na inteira liberdade
Que é a ilusão que agora
Nos torna iguais aos deuses".
(Ricardo Reis)

(07/09/2023)

Em mil oitocentos e vinte e dois, no dia sete de setembro e às margens do riacho Ipiranga, em São Paulo, a história conta que D. Pedro declarou a independência brasileira. Com o brado "Independência ou morte!", o príncipe decreta, enfim, a autonomia do Brasil em relação à nação portuguesa. Esse episódio é por todos conhecido e repetido ao longo dos anos em nossas classes escolares. Mas gostaria de pensar, a partir dele, nos conceitos de independência e dependência, morte e vida e, claro, a relação desses termos com a Escritura.

Inicialmente, é essencial destacar que, em lugar da escolha entre independência ou morte, na Escritura, conhecemos a parceria dependência e vida, pois o evangelho nos convida a uma vida de dependência a Deus e condiciona essa dependência à vida abundante nEle, numa relação de causa e efeito. Depender, no entanto, não é tarefa simples. Pense em alguém que, debilitado fisicamente, torna-se incapaz de realizar suas próprias tarefas, não conseguindo, sequer, executar, sozinho, suas necessidades básicas. Difícil, não? A vulnerabilidade de quem não tem controle sobre si mesmo ou sobre suas funções é, no mínimo, assustadora. Mas, acredite, esse é o convite de Deus para nós: que sejamos dependentes dEle, que estejamos vulneráveis em sua presença, que precisemos, desesperadamente, dEle em nossas vidas, assim como uma plantinha recém semeada precisa de sol, água e cuidados para prosperar.]

Nesse par dependência-vida embute-se o fato de que abriremos mão de nós mesmos para priorizar Deus em todos os âmbitos do nosso viver. Esta é a vida que o evangelho nos convida a levar: na dependência de Deus, de Sua graça e misericórdia e vivendo, abundantemente, a vida que Jesus é. Ele, que também é o Caminho e a Verdade (Jo 14.6), convida-nos a viver na dependência dEle, e isso significa negar o autocontrole de nossas vidas, submetendo a Ele nossas vontades e expectativas; tomar, a cada dia, a própria cruz, compreendendo que assumir esse compromisso com Ele implica trilhar no caminho da rejeição e mesmo da morte, como o Mestre; e seguir a Jesus, aprendendo seus ensinamentos e desenvolvendo seu caráter todos os dias. Uma dependência que gera vida, e vida em abundância, mas que implica na mortificação das obras da carne para que, em nós, frutifique o fruto do Espírito (Gl 5.16-23).

Mas… e os versos de Ricardo Reis, um dos homônimos do poeta Fernando Pessoa, que abrem o texto de hoje? Bem, por mais inteira que seja a liberdade, ela não nos torna deuses. Em Cristo, a liberdade é concreta e não uma ilusão e, em lugar de nos exaltar como deuses, nos rebaixa à humilíssima condição de servos. A Bíblia afirma, no entanto, que Cristo nos chamou para a liberdade (Gl 5.1), então essa dependência não é uma relação tóxica ou maléfica para nós. O paradoxo do evangelho é que, sendo dependentes, somos, também, livres; estando enlaçados a Cristo, somos profundamente amados porque esses laços que nos prendem são, essencialmente, laços de amor (Os 11.4). Vivemos em dependência e isso não nos aprisiona, mas liberta. Buscar os preceitos de Deus, como anunciou o salmista, nos permite andar, verdadeira e vivamente, em liberdade (Sl 119.45).

Que, firmadas na Palavra, vivamos e anunciemos, hoje e todos os dias, a dependência e a vida que Jesus nos oferece.


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