quinta-feira, 6 de junho de 2024

Deus conosco, Deus comigo.

 “E agora, José?”
(Carlos Drummond de Andrade)

Já se sentiu sozinha? Eu já e mais de uma vez. Dependendo da situação em que nos encontremos, estar sozinha pode causar insegurança e medo. O poema de Drummond, usado como epígrafe a este texto, intitula-se “José” e é bem conhecido. Nele, o eu lírico questiona José, apontando-lhe sua solidão numa cidade grande: o que José vai fazer sem festa ou luz, sem povo ou aconchego, sem mulher, sem discurso, sem carinho? José está só. Irremediavelmente só. O nada se apresenta diante de José; nem mesmo existe um mar onde ele pudesse desistir de tudo que é o nada de sua vida. Sem nada e no nada, só lhe resta vivenciar a solidão. 

Por vezes, sou José e sinto-me só enquanto a própria vida me questiona: “e agora?”. Sim, às vezes tenho como companheira a solidão, porque ela não é exclusividade de algumas pessoas, mas acomete a todos, em momentos diversos da vida. Sem nada e no nada, só me resta vivenciar a solidão. 

No entanto, há para nós - assim como havia, no poema, para José -, uma chave. Lá, José tenta abrir a porta com ela, mas nem mesmo a porta existe. Aqui, no entanto, para mim e para você, há a boa notícia: no Evangelho, encontramos a chave e a porta para vencer a solidão: o Emanuel, Deus sempre conosco. 

Quando imaginamos a excelência e a supremacia de Deus Pai, imensurável em Sua grandeza e perfeito em tudo que faz, pode ser que a ideia de tê-lo como Deus conosco pareça distante da realidade e totalmente estranha a nós. Afinal, Deus é o Criador, Aquele que é o Senhor do universo e a tudo governa com soberano poder. Como imaginar esse Deus conosco, sendo o Amigo que nos tira da solidão? Como imaginá-lo Deus conosco, lado a lado nos momentos bons e ruins?

A Palavra nos assegura essa constante companhia do Emanuel ao nosso lado. O Deus Pai, por tanto nos amar, enviou Jesus, o Deus Filho, que se fez carne por amor e em nosso meio habitou. Como se fosse um de nós, sendo Ele o próprio Deus encarnado, viveu com a gente, caminhou com a gente, padeceu as limitações do ser gente e tudo para que não fôssemos mais sós, antes fôssemos um com Ele. Seu amor nos arrebata da solidão. Esse Deus conosco é o mesmo ontem, hoje e para sempre; Ele estará conosco todos os dias, até que os dias tenham fim. Como ensina Dane Ortlund, em seu livro Santificação profunda, “ele caminhará com você até o céu.” 

E agora, você? Diante da verdade do Evangelho, é preciso tomar uma decisão. Como o José do poema, você pode se manter inflexível, dura e fazer de conta que o caos ao seu redor não a abala, que a solidão não incomoda, que estar só é apenas uma opção. Ou pode render-se. Entregar os pontos Àquele que é companhia, abrigo e proteção. Entregar-se ao Deus conosco que é conosco em todo tempo e por todo tempo e compreender, afinal que o Emanuel é um Deus relacional, que está conosco, que está comigo, que não nos deixará jamais. Com Ele, Jesus, o Deus conosco, não há espaço para a solidão. 

Deus abençoe a sua vida!

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quinta-feira, 30 de maio de 2024

Alegria, alegria!

"É melhor ser alegre que ser triste
Alegria é a melhor coisa que existe 
É assim como a luz no coração"
(Vinícius de Moraes)

(09/11/2023)

Suponho que quase todos concordam com esses versos do poeta, pois dificilmente alguém se orgulhará de ser mais triste que alegre. A alegria, afinal, "é a melhor coisa que existe", iluminando rostos e corações. No entanto, na estrofe seguinte de "Samba da bênção", Vinicius de Moraes faz uma oposição, que traz uma exceção ao possível padrão de #melhorseralegre: para se fazer um samba, há que se ter "um bocado de tristeza", pois a "tristeza tem sempre uma esperança". Assim, vale refletir: seria a alegria uma escolha? Já que um sentimento (a alegria) é melhor ou mais desejado que o outro (a tristeza), dá pra escolher entre ser alegre ou triste, alternando os dois ao nosso bel prazer?

Neste texto, em particular, gostaria de refletir sobre a alegria, essa virtude tão ansiada, mas ao mesmo tempo tão frágil e suscetível às intempéries que atravessam nossa existência.

A Bíblia ensina que o cristão deve ser alegre (I Ts 5.16), regozijando-se sempre (Fp 4.4), ainda que haja obstáculos a essa alegria, e esse imperativo justifica-se pelo fato de a nossa fonte de alegria ser inesgotável, não advinda de momentos ou circunstâncias: nossa alegria é verdadeira e vem do próprio Deus. Ele é a fonte e a causa da alegria, por isso essa virtude é parte do fruto do Espírito, desenvolvido em nós pelo Espírito Santo, para a glória de Deus (Gl 5.22). Além disso, o reino de Deus é "justiça, paz e alegria no Espírito Santo" (Rm 14.17), por isso, quem faz parte desse Reino deve ter essas virtudes em sua vida.

Como se vê, cultivar a alegria é dever; não obstante, constitui-se também um privilégio, pois nossa alegria aponta para a alegria vindoura, superior e eterna, quando estaremos para sempre com o Senhor, usufruindo da alegria que é gozar da comunhão com Deus. Por isso, não basta estar alegre: é preciso cultivar a alegria todos os dias, para amadurecermos nesse quesito. Ter sido alcançados por Jesus, sermos alvos do amor de Deus e cultivarmos a expectativa de morarmos eternamente nos céus são claros motivos que nos impulsionam a viver alegres.

Mas, e a tristeza? Com efeito, a vida é, entre outras coisas, sobre alegrias, tristezas e esperanças, as quais vão se intercalando nos diversos momentos que compõem nossa experiência de vida e nem sempre podemos escolher entre um ou outro: somos, simplesmente, assomados por eles. Quem vive momentos maus, de doença, luto ou dificuldades de qualquer ordem sabe como é difícil manter-se alegre. A canção da alegria revela-se frágil, desafinando diante de situações adversas, quando o sorriso perde espaço para as lágrimas ou para o semblante entristecido. Pode-se pensar em pelo menos dois obstáculos à alegria.

Em primeiro lugar, há o pecado. Ele nos afasta de Deus e rompe, também, nossa alegria. Vemos isso, por exemplo, na história do rei Davi, cujo pecado silenciado enchia de tristeza o seu coração, tornando sua alma seca e seus ossos enfraquecidos (Sl 32.3-4); o mesmo salmo nos mostra, no entanto, que confessar a Deus o seu pecado foi o que restituiu ao salmista a alegria da salvação (Sl 32.5,11). Isso nos ensina que a confissão de nossos erros e falhas ao Senhor é um remédio que combate o pecado e nos traz de volta a alegria.

Como segundo obstáculo à alegria, há o fato de que nem sempre confiamos em Deus. Por vezes, nosso olhar, para se manter alegre, precisa estar centrado em bens materiais, pessoas que amamos ou na vida perfeita que construímos e, quando uma dessas coisinhas falha, vai-se também a nossa alegria. Ora, para que nossa alegria seja inabalável devemos olhar "firmemente para o Autor e Consumador da fé, Jesus, o qual, em troca da alegria que lhe estava proposta, suportou a cruz, sem se importar com a vergonha, e agora está sentado à direita do trono de Deus. Portanto, pensem naquele que suportou tamanha oposição dos pecadores contra si mesmo, para que vocês não se cansem nem desanimem" (Hb 12.2-3). Houve, também, dor e sofrimento no caminho de Jesus, mas o Mestre não se importou com a vergonha ou com a cruz que teve de suportar, tampouco se cansou ou desanimou: Ele deixou-nos o exemplo de olhar para Deus nesses momentos.

Somente a intervenção divina pode nos garantir uma alegria independente de circunstâncias, ministrada em nosso coração e cultivada em nossa vida de forma sobrenatural. É melhor ter a alegria do Senhor, mesmo quando um bocado de tristeza nos invade. 

Que Ele nos ensine a ser alegres.

A Casa do Amor

 

"O ser busca outro ser, e ao conhecê-lo
acha a razão de ser, já dividido.
São dois em um: amor, sublime só
que à vida imprime cor, graça e sentido."
(Carlos Drummond de Andrade)


(04/12/2023)

Somos seres em busca de outros seres, pois não nos completamos em nós mesmos. O poema de Drummond, ao tratar da busca-encontro do-com o amor, generaliza essa busca enquanto pessoaliza o buscante: "um ser". Essa temática encontra eco em outros poetas, a exemplo de Tom Jobim, que cantou: "fundamental é mesmo o amor: é impossível ser feliz sozinho", ou John Donne, poeta inglês, que já no século XVI declarava "Cada homem é um pedaço do continente, uma parte do todo (...) A morte de qualquer homem me diminui, porque sou parte da humanidade". Definitivamente, precisamos do amor, o que equivale a dizer que precisamos de outro ser que, em sua aparente plenitude, tornará concreta a nossa própria completude, concretizando, assim, o amor. E essa necessidade natural do ser não se restringe aos relacionamentos íntimos; precisamos de outro ser ao lado, para caminhar com a gente, com quem dividir histórias, a quem nos dirigir para partilhar sonhos e frustrações, seja esse outro o amigo, o amor, o irmão.

Apesar de tudo isso parecer utopia quando olhamos para a sociedade em que estamos imersos e na qual palavras como individualidade, egocentrismo e autoconhecimento parecem valer mais do que coletividade, solidariedade e empatia, a verdade é que não encontraremos nossa razão de ser, a menos que nos encontremos no outro. A parte que nos falta é o outro, e encontrá-lo é concretizar o amor.

Como anunciado nos versos drummondianos, o amor imprime cor, graça e sentido ao ser que ama, o que nos leva à compreensão de que, antes de ser uma ação para fora, o amor exerce algo dentro de quem ama. E essa sensação de ligação com o outro que faz bem à pessoa que ama e, de alguma forma, a impulsiona a cumprir sua sina de se encontrar em alguém que está fora de si mesmo, essa sensação me faz pensar no Deus que é amor e que por nos amar nos deu comunidades a que chamamos igrejas.

Não somos seres relacionais por acaso: espelhamo-nos na imagem dAquele que nos criou e que é, por natureza, relacional. Já no Gênesis, vemos a primeira pessoa do plural manifestando a relacionalidade da Trindade na ordem "Façamos!" e o "Deus que fala 'nós' não poderia criar um ser que diz apenas 'eu' (GONÇALVES, 2019, p.32). Por isso, as comunidades eclesiásticas - que têm a missão de reunir os santos para anunciar o Reino de Deus enquanto servem à comunidade - precisam ser esse espaço em que o amor torna-se concreto nas relações que se estabelecem entre os irmãos.

Essa comunhão, no entanto, não pode se pautar em gostos pessoais ou seleções por afinidades, mas deve ter como modelo o ser relacional que Deus é. Desde o Éden, vemos o Criador em comunhão com Adão e Eva, Suas criaturas, uma comunhão que se estende ao longo da narrativa bíblica. Nosso Deus, portanto, é um Deus que se relaciona com Seu povo; como povo de Deus, pois, nossos relacionamentos devem se pautar no conhecimento do outro, o que gera pertencimento, e não em acasos ou encontros esporádicas; afinal, "igreja não é um lugar para frequentar, mas uma família para pertencer" (id, p.151). Essa constatação nos leva de volta ao conceito de amor como ação que nos move ao outro para que, ambos, completemo-nos com cor, graça e sentido. A igreja é esse lugar de completude, por isso nos alegramos com as vitórias de nossos irmãos e lamentamos e choramos com suas dores na mesma intensidade com que vibramos com nossas próprias alegrias e nos afligimos com nossos pesares. Isso é amor em sua concretude; isso é igreja em sua essência; isso é reflexo do Deus que é amor.

Igreja é o local onde os relacionamentos são curados exatamente porque é composta de pessoas que encontraram o Amor de suas vidas após buscar "outro ser, e ao conhecê-lo" acharam, definitivamente, "a razão de ser", tal qual Agostinho, que em sua busca declarou "Fizeste-nos, Senhor, para ti, e o nosso coração anda inquieto enquanto não descansar em ti". Quem encontra esse descanso encontrando Deus tem a vida transformada e, por essa transformação, pode, enfim, olhar para o outro vendo nele a imagem de Deus. Por fim, ao vê-la, é levado a estender para fora o amor que o invadiu quando Deus, o amor, irresistivelmente o chamou para si. O outro nos revela o próprio Deus, daí que "precisamos uns dos outros para que tenhamos uma revelação de quem é Deus" (id, p.130).

Igreja é o local que abriga vários eus que encontraram o Amor em sua concretude e, doravante, compreendem-se nós. Igreja é, portanto, a Casa do Amor.


GONÇALVES, Douglas. Sou nós: a imagem de Deus em nós. Rio de Janeiro: Thomas Nelson Brasil, 2019.

Consolo na vida

 Vamos, não chores...
A infância está perdida.
A mocidade está perdida.
Mas a vida não se perdeu.
O primeiro amor passou.
O segundo amor passou.
O terceiro amor passou.
Mas o coração continua.
("Consolo na praia", Carlos Drummond de Andrade)

A etimologia define a palavra consolo como "aliviar" "com", o que nos remete ao ânimo compartilhado, seja diante do sofrimento, seja diante da ausência de expectativa. Os versos de Drummond traduzem isso em certa medida. O "consolo na praia" é executado pela voz lírica a alguém que parece não ter muitos motivos para se alegrar: foi-se a infância e a mocidade, passaram-se os amores… no entanto, permanece a possibilidade de algo animador acontecer, afinal, "o coração continua" e "a vida não se perdeu".

Em geral, não gostamos de ser consolados - não que sejamos antissociais ou autossuficientes, mas porque não somos preparados para aquilo que pode nos tirar o ânimo. Morte, dor, traição, solidão: não fomos criados para essas coisas. Por isso, intuitivamente, nossa convicção é a de que o melhor é não precisarmos viver situações em que o consolo se faça necessário. No entanto, somente quem passou por um desses momentos e foi consolado sabe o valor que o consolo tem. E aqui abre-se um paradoxo: não queremos precisar ser consolados, mas nos alegramos quando o somos.

Quando em situações pesadas, complexas, difíceis, precisamos confiar em algo ou alguém que nos ajude a encontrar alívio. No poema, a voz lírica tenta fazer isso. Na vida real, no entanto, é preciso mais.

Deus é esse mais. Aquele que nos consola quando entristecidos, nos fortalece quando enfraquecidos e nos sustenta mesmo se a fraqueza parece estar prestes a nos consumir. Quando Jesus, certa vez, anunciou aos seus discípulos que iria ao Pai para lhes preparar um lugar, anunciou também que deixaria o Espírito Santo, o Consolador. Esse Consolador é definido como "o Espírito da verdade, que o mundo não pode receber, porque não o vê, nem o conhece; vós o conheceis, porque ele habita convosco e estará em vós" (João 14.17).

Temos, pela Palavra de Deus, a certeza de que este Consolador nos acompanhará todos os dias de nossas vidas - e basta olharmos um pouco para a vida que perceberemos como precisamos desse Consolo constante. Nem sempre haverá sorrisos; lágrimas e pranto certamente atravessarão nosso caminho. Amamos os dias ensolarados, mas os dias nublados e de tempestade também existirão. Gostamos das flores brotando em nossos jardins, entretanto, por vezes neles só haverá ervas daninhas ou mesmo a sequidão e o estio. A morte faz parte da vida, assim como a dor, a tristeza, a perda e a solidão. É preciso confiar em Quem é maior que a morte, a dor, a tristeza, a perda e a solidão.

Gosto muito do filme Coração valente, especialmente da cena em que William Wallace, personagem de Mel Gibson, faz um emocionante discurso de incentivo ao povo antes de lutar. Sua voz se ergue como motivação e consolo, e o exército torna-se impelido a lutar corajosamente. Da ficção à realidade, temos em Deus o nosso consolador. Em Isaías 51.12, lemos uma declaração do Senhor para o seu povo que, à época, estava enfrentando lutas e a perseguição de homens maus: "Eu, eu sou aquele que vos consola; quem, pois, és tu, para que temas o homem, que é mortal, ou o filho do homem, que não passa de erva?". Com uma declaração dessas, não há como temer.

Deus é o nosso consolo. Nele podemos nos refugiar e encontrar segurança, conforto, abrigo e paz. Se em Coração Valente o incentivo motiva o exército a lutar com suas próprias forças, estratégias e possibilidades, em Deus recebemos consolo pela força do Espírito Santo.

Que Ele nos ajude na caminhada.

Abra os meus olhos!

 "Eu vi o Amor — mas nos seus olhos baços
Nada sorria já: só fixo e lento
Morava agora ali um pensamento
De dor sem trégua e de íntimos cansaços."
(Antero de Quental)

(13/11/2023)

No poema Visão, do poeta português Antero de Quental, cuja primeira estrofe nos serve de epígrafe, o eu lírico vê o invisível: ele vê o amor. Não obstante, trata-se de um amor triste, melancólico, cansado, de olhos baços - o que a mim parece pouco inspirador. A visão pode não ter sido das melhores, mas quero ater-me ao fato de que ele "viu".

E, então, pergunto: como está a sua visão? Você tem conseguido enxergar - bem e com clareza - tudo o que está à sua volta? Tenho andado preocupada com a minha visão, especialmente a do olho direito; nele há certo embaçamento, além de coceira e lacrimejar que têm incomodado e interferido no que vejo. Consulta já marcada ao oftalmologista para averiguar do que se trata. Entretanto, com visão embaçada ou límpida, a verdade é que nem sempre vemos o que precisamos ver e, por vezes, vemos o que não deveríamos.

Jesus, no Sermão do Monte, nos informa e adverte:

"Os olhos são a lâmpada do corpo. Se os seus olhos forem bons, todo o seu corpo será cheio de luz; se, porém, os seus olhos forem maus, todo o seu corpo estará em trevas. Portanto, se a luz que existe em você são trevas, que grandes trevas serão!" 

(Mt 6.22,23).

O Mestre ensina nesse trecho que os olhos precisam ser sadios, pois essa "saúde visual" permitirá escolhas saudáveis do que se vê. Um olho enfermo vê as coisas turvas, embaçadas, sem nitidez; se em meio à escuridão, não é capaz de distinguir objetos ou pessoas, pois vê apenas as trevas diante de si. Ao contrário, porém, olhos saudáveis podem selecionar o que é visto, abstendo-se de visões constrangedoras ou más, por exemplo, e, ainda, são capazes de ajustar o foco e enxergar mesmo em meio às trevas.

A advertência de Jesus nos versículos lidos acima traz consigo uma responsabilidade: se há um peso tão grande sobre os olhos, ao ponto de eles serem a lâmpada do corpo, é preciso cautela e prudência para escolher, sabiamente, aquilo que veremos do que se apresenta diante de nós. Analogamente, portanto, assim como os olhos naturais trazem luz ou trevas para o corpo, a depender de sua saúde, os olhos espirituais também precisam de saúde, sob pena de, não a tendo, transmitirem a enfermidade da falta de visão para todo o corpo.

E como podemos manter a saúde de nossos olhos espirituais?

A tônica do capítulo 6 de Mateus centraliza-se na exortação para que seus discípulos fixem suas afeições não no mundo, mas no reino de Deus. O Mestre fala sobre a forma correta de dar esmolas, orienta como se deve orar, deixando como modelo a oração conhecida como "Pai Nosso", ensina sobre o jejum e orienta que tesouros no céu sejam acumulados, e não na terra. Depois desses temas, trata dos versículos que destacamos, evidenciando os olhos, a partir das oposições: bons x maus; luz x trevas. A saúde de nossos olhos espirituais poderá ser mantida quando compreendemos a lógica de vida esperada para um discípulo de Jesus: como filhos e filhas de Deus, integrantes de Seu reino, precisamos pedir ao Pai que abra nossos olhos para que possamos ver as maravilhas de Sua Lei (Sl 119.18) e que, ao vê-las, possamos nelas pensar (Fp 4.8)*. É assim que deve viver um cidadão do reino de Deus: tendo o Senhor como Rei em seu coração e suas emoções, pensamentos, visão e comportamento voltados para a Palavra de Deus. Há bênçãos lindas diante de nós, prometidas por nosso Pai nas Escrituras, mas por vezes não conseguimos enxergá-las porque deixamos que o pecado embace nossa visão espiritual.

A Lei do Senhor - a Sua Palavra - é a luz na qual devemos fixar nossos olhos para que, enfim, eles sejam bons e, nosso corpo, iluminado. O apóstolo Paulo, ao orar pela igreja de Éfeso, pede a Deus "que ilumine os olhos do coração" daqueles irmãos, para que pudessem saber "qual a esperança da vocação" e "a riqueza da glória da sua herança nos santos" (Ef 1.18). Quando nossos olhos estão fixos em Deus, vemos o próprio Amor (1 Jo 4.8), e esse - acreditem - difere totalmente do amor visto por nosso poeta; em Deus, o Amor, não há tristeza ou cansaço, tampouco lástima ou embaçamento. Deus, o Amor, nos instrui e ensina quanto ao caminho que devemos seguir, guiando-nos com Seus amados olhos (Sl 32.8) por uma vereda "que vai brilhando mais e mais até ser dia perfeito" (Pv 4.18). Portanto, "se pusermos nossos olhos na Palavra de Deus, ela nos levará mais adiante" (Calvino, Escritos Seletos).

Que Ele nos abra os olhos.


* Essa associação entre olhos e mente foi feita por Calvino, ao analisar o versículo em tela em seu Comentário bíblico do Novo Testamento (p.176). Ele afirma: "Diz-se que a luz se transforma em trevas, não apenas quando os homens permitem que os desejos perversos da carne dominem o julgamento de sua razão, mas também quando eles entregam suas mentes e pensamentos perversos e, assim, degeneram bestas" (CALVINO, s/d, p.178)

Amor

"João amava Teresa que amava Raimundo
que amava Maria que amava Joaquim que amava Lili,
que não amava ninguém.
João foi para os Estados Unidos, Teresa para o convento,
Raimundo morreu de desastre, Maria ficou para tia,
Joaquim suicidou-se e Lili casou com J. Pinto Fernandes
que não tinha entrado na história."
(Carlos Drummond de Andrade, Quadrilha)

(07/11/2023)

Drummond se superou nesse poema, intitulado Quadrilha, dança popular metaforizada na troca de afeições sem correspondência que vai acontecendo ao longo da vida de João, Teresa, Raimundo, Maria, Joaquim, Lili. Esses personagens vão se alternando em desencontros na primeira estrofe, enquanto o destino deles é apresentado na segunda, onde, também, conhecemos J. Pinto Fernandes, "que não tinha entrado na história".

Esse poema de ares infantis e construção dinâmica fala, na verdade, de um anseio natural do ser humano: amar e ser amado. Mesmo sabendo dos possíveis desencontros que a vida há de proporcionar, prosseguimos nossa jornada buscando esses alvos. Queremos amar. Queremos ser amados.

Mas o amor demonstrado nos versos drummondianos não necessariamente corresponde ao amor que satisfaria nossos anseios. Amar quem não nos ama é dureza; pode nos conduzir a destinos inesperados (um outro país ou o convento) ou nos deixar na solidão.

Que amor, então, devemos buscar?

"O ser busca o outro ser, e ao conhecê-lo

acha a razão de ser, já dividido."

(Carlos Drummond de Andrade, Amor)


Esses versos também são de autoria de Drummond e iniciam um poema chamado Amor. O poeta começa, como se vê, definindo um sentimento que, essencialmente, fala de relacionamento. Como seres relacionais que somos, criados pelo Deus triúno que nos fez em e para a comunhão, acharemos a resposta a nossos anseios de amar e ser amados quando nos encontrarmos nesse Deus, descrito na Bíblia como "amor" (1 Jo 4.8). Esse Deus que é amor é quem nos ensina a amar e nos permite ser amados.

De tanto nos amar, esse Deus que é amor derrama sobre nós o seu Espírito e este desenvolve em nós o seu fruto.

O fruto do Espírito é descrito em Gálatas cinco, versículos vinte e dois e vinte e três como compreendendo nove aspectos, nove qualidades que frutificam no coração fértil daquele que foi alcançado pelo Deus que é amor. O primeiro desses aspectos é o amor.

Se olharmos para a caracterização do amor que a Escritura nos faz através do apóstolo Paulo, em I Coríntios treze, observaremos que, humanamente, a produção desse amor ser-nos-ia impossível. Observe:

"O amor é paciente, é benigno; o amor não arde em ciúmes, não se ufana, não se ensoberbece, não se conduz inconvenientemente, não procura os seus interesses, não se exaspera, não se ressente do mal; não se alegra com a injustiça, mas regozija-se com a verdade; tudo sofre, tudo crê, tudo espera, tudo suporta. O amor jamais acaba" (versículos 4-8).

Uau. Parece-me que, certamente, um amor assim seria capaz de suprir meu desejo de amar e ser amada!

No entanto, creia-me: nunca seremos capazes de amar ou receber esse amor, com essas características tão bem desenhadas, contando com a nossa própria capacidade. Apenas o Espírito de Deus pode desenvolvê-lo em nós.

Somente um Deus que é o próprio amor tem poder para isso.

Que Ele nos ajuda e nos faça frutificar essa virtude. E, uma vez tendo o amor em nós frutificado, que amemos a Deus - de todo o nosso coração, de toda a nossa alma e de todo o nosso entendimento - e ao próximo como a nós mesmos (Mateus 22.37-39).

Antes de ficar muda

 

"Sei que canto. E a canção é tudo.
(...)
E um dia sei que estarei mudo:
— mais nada."
(Cecília Meireles)

(03/10/2023)

Ontem tive um dia intenso. A agenda previa duas reuniões, uma no começo e outra ao final do expediente, além de algumas tarefas que exigiam organização, atenção e, obviamente, tempo. Outras atividades foram engrossando a lista das tarefas do dia, enquanto, numa direção totalmente oposta, os checks indicadores de tarefas cumpridas iam se tornando inexistentes à medida que as horas passavam. Quando dei por mim, era o momento de ir pra casa, pois a jornada de trabalho terminara. Lembrei-me desses versos de Cecília Meireles e da melancolia presente neles. A canção, que é tudo, tornar-se-á nada ao ser consumida pelo tempo. Um dia, a voz usada para cantar estará muda, e o silêncio ocupará, solenemente, o que eram sons, melodia, canção. A melancolia está nesse preenchimento às avessas: o silêncio em lugar da canção; o vazio em lugar da voz. A certeza do mutismo é desesperadora e traz a sensação de "mais nada". O tempo não perdoa: apenas passa. O que fazer diante dessa iminência de, um dia, ficar muda?

Victor Hugo, poeta e romancista do Romantismo francês, disse, certa vez, que "A vida já é curta, mas nós tornamo-la ainda mais curta, desperdiçando tempo"; Shakespeare, também poeta e dramaturgo, engrossa o coro que afirma ser curta a vida e acrescenta: "Passar esse momento de forma vil seria um desperdício". Ambas as frases me fazem pensar, novamente, na brevidade da vida que anunciou Meireles em seus versos.

Entretanto, mais que tocar poetas e prosadores, a brevidade da vida é pauta de nossas próprias vidas: nós, seres comuns que nos perdemos em meio ao ordinário das multidões, também concordamos que a vida é breve e que precisa, portanto, ser bem aproveitada, antes que nos venham os dias maus e o tudo de nossa canção se perca. Antes que fiquemos mudos.

A Bíblia, apontada no Catecismo Maior de Westminster como a Palavra de Deus e única regra de fé e prática do cristão, trata do assunto em questão de forma modelar, ensinando-nos a viver de forma que agrade a Deus. Agradar a Deus, aliás, ensina a Escritura, é a melhor maneira de aproveitar a vida e de bem gastar o tempo. Sentenciando que a vida é um sopro e que nossos dias são como uma sombra que passa (Sl 144.4), a Escritura nos exorta a não confiar no homem, mas em Deus (Is 2.22; Tg 4.14). Assim, nossa humilde condição deve não apenas reconhecer a brevidade de nossa vida finita, mas pedir ao Senhor sabedoria para contar nossos dias com vistas a alcançarmos corações sábios (Sl 90.12).

Deus nos presenteou com um bem, lindo e perfeito, chamado tempo. Tal presente, no entanto, somente será bem usufruído se usado com sabedoria e segundo a vontade de Deus. Por mais que nomeemos nossas canções de nosso tudo, esse tudo, igualmente sujeito ao tempo, há de ser passageiro assim como nós o somos. No hiato entre a canção de hoje e a mudez de amanhã há o tempo presente. O dia que se chama hoje é nossa oportunidade de honrar a Deus por nos permitir viver cada dia e ter uma rotina para chamar de nossa. Seja ela insana ou pacata, surpreendente ou previsível, a rotina que temos representa o cuidado de Deus para conosco.

Um dia, estaremos mudos, mais nada; e essa mudez pode ser, literalmente, a ausência da voz, ou, metaforicamente, a ausência de qualquer outro "tudo" que cultivamos. Um dia, estaremos mudos: e o que é passageiro - o tempo, inclusive - terá, enfim, passado. Vivamos o hoje de modo que valha a pena. Vivamos o hoje com a voz erguida pelo que importa. Vivamos o hoje. Antes que ele não mais exista.


Seja paciente

 

"Deus é paciência"
(Guimarães Rosa)

(26/09/2023)

A certa altura do romance Grande sertão: veredas, de Guimarães Rosa, Riobaldo exclama: "Deus é paciência." Conhecido pelas magníficas subversões que fez na língua, Rosa parece ter acertado na simplicidade da fala desse personagem. Essa definição de Deus é coerente; Ele é, de fato, paciente, e sua paciência é uma prova de sua bondade. Deus tolera nossos pecados e os perdoa - mesmo que nossos pecados constituam uma afronta à sua santidade. Ele é longânimo para conosco, "não querendo que nenhum pereça, senão que todos cheguem ao arrependimento" (2Pe 3.9). Longanimidade é um aspecto do fruto do Espírito (Gl 5.22-23) e essa virtude pode ser compreendida como uma ampliação da paciência, ou uma paciência especial para suportar injúrias de outras pessoas; e Deus é longânimo, suportando nossas injúrias e infidelidades.

Nós, criaturas feitas à imagem e semelhança de Deus, temos a semente da paciência implantada em nosso DNA. No entanto, nem sempre a deixamos florescer, não é verdade? Afinal, vivemos na era do imediatismo; da alimentação fast-food ao pagamento de contas por aproximação, a celeridade da vida vai nos moldando e tornando cada vez mais intolerantes à paciência. Tudo o que nos interessa está a um clique de nossas mãos, e isso tem nos transformado numa sociedade cuja história se molda por episódios que se iniciam e se concluem muito rapidamente. O sociólogo e filósofo polonês Zygmunt Bauman nomeou nossa sociedade e as relações que nelas se desenvolvem de líquidas; de fato, a superficialidade torna-se protagonista, tal qual a rapidez, e a paciência é, nesse palco, a grande antagonista de nossos roteiros de vida. Em meio a essa liquidez, contamos com a paciência de Deus e a pedimos com frequência, sem, no entanto, compreender que Ele deseja que nós, também, sejamos pacientes.

Sim! O Deus da paciência deseja que nós, seus filhos e filhas, sejamos, também, pacientes, e podemos verificar isso ao longo da Escritura. O salmista nos convida a descansar no Senhor e esperar, pacientemente, nEle, na certeza de que dEle é que vem a nossa salvação (Sl 37.7-8) e também nos anima a ser fortes e esperar no Senhor (Sl 27.14), enquanto o sábio nos ensina a combater a vingança com a paciência, esperando pelo livramento de Deus (Pv 20.22), além de destacar que o paciente acalma discussões (Pv 15.18), pois a paciência lhe dá sabedoria (Pv 19.11). A exortação paulina aos gálatas foi para que não se cansassem de fazer o bem, pois a colheita viria e eles poderiam vê-la, caso não desanimassem (Gl 6.9). Aos filipenses, o apóstolo orientou que não andassem ansiosos, mas que apresentassem a Deus, em oração, seus pedidos (Fp 4.6). Ao discorrer sobre o amor, Paulo afirma: o amor é paciente, pois tudo espera (I Co 13.4,7).

Deus, o Amor (I Jo 4.8), é paciente. Nós, seus filhos e filhas, também precisamos ser. A despeito, porém, desse fato ou dos versículos acima apresentados e de tantos outros que poderíamos citar, não é fácil desenvolver a paciência. Nosso imediatismo grita por respostas, soluções e desejos atendidos na hora, obviamente. Aquela ideia de aguardar a salvação do Senhor e, ainda por cima, em silêncio (Lm 3.26) parece-nos cada vez mais distante. No entanto, o apóstolo Paulo, em sua carta aos romanos roga ao "Deus da paciência" que lhes "conceda o mesmo sentir de uns para com os outros, segundo Cristo Jesus" (Rm 15.5), e isso nos mostra que é possível nos tornarmos pacientes, a despeito da impaciência que em nós habita. Deus, que nos escolhe e chama, também nos capacitará e transformará até que sejamos filhos pacientes, para a glória de nosso Pai.

Como disse o pastor Yago Martins, "ser crente é esperar" (MARTINS, 2020, p.133), pois o que nos move é a esperança da volta de Jesus, nosso Redentor: "A vinda do Senhor está próxima e, se precisamos esperar por isso com paciência, encontramos força para esperar outras coisas menores" (id, p.141). Enquanto miramos nesse dia glorioso, nosso coração é inundado de uma santa paciência, e a certeza de que tudo tem seu tempo determinado (Ec 3.1) nos apazigua, em vez de nos atormentar. Tenhamos, pois, paciência. Ele já começou a obra em nós - e há de completá-la até o dia de Cristo Jesus (Fp 1.6).

Que Deus abençoe a sua vida!


MARTINS, Yago. Pecados aceitáveis. Brasília, DF: Editora 371, 2020.

ROSA, João Guimarães. Grande sertão: veredas. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2005.

Não deixe de orar!

 

"Parem de reagir.
Nas paredes
Discursos de obscenidade
nenhum santo me escuta."
(Mia Couto)

(19/09/2023)

O poema de Mia Couto intitula-se Versos do prisioneiro (1). Nele, o eu lírico transmite sua descrença em meio ao silêncio de sua prisão. Diante dele e à sua volta, apenas paredes riscadas de obscenidades; quanto à escuta, nenhum santo parece ter essa habilidade.

A desesperança e a solidão não são, no entanto, características exclusivas do poeta. Por vezes, eu e você podemos passar por situações que parecem nos afastar de nossas crenças, valores e amigos. O que determina o desfecho nesses casos é o que fazemos - ou deixamos de fazer - quando parece não haver auxílio ou escuta. Para o poeta, a ação foi de interrupção: ele deixou de rezar. E você, o que faz? Quando à sua voz segue-se o silêncio e seu grito não obtém resposta ou quando seus olhos esticam-se à procura de alguém, mas não encontram ninguém como resposta, o que costuma fazer?

Permita-me compartilhar o que a Bíblia nos ensina a fazer a esse respeito. Sim, ela também fala de solidão e abandono. A Bíblia não é um conto de fadas que trata de um mundo fantasioso e perfeito; ela é a Palavra do Deus que decreta providência e amor sobre todas as coisas. Dessa forma, sim, nela há espaço para a dor, o abandono e a solidão, porque essas são situações típicas do homem e a Escritura é, justamente, a Palavra de Deus que vem ao homem, em seu estado caído.

O salmo 121 começa com uma constatação e uma pergunta:

"Elevo os meus olhos para os montes: de onde me virá o socorro?" (Sl 121.1)

Trata-se de um canto de romagem e, geralmente, quando em peregrinação para Jerusalém, os peregrinos costumavam olhar para o alto, para os montes, local que lhes inspirava a lembrança do Deus manifesto, pois Sião, um desses montes ao norte de Jerusalém, era o símbolo físico da morada de Deus, por ser o local do templo do Senhor. Perceba que o salmista também parece buscar à sua volta alguém que lhe responda e lhe sacie a dúvida - e, ao olhar para os montes, tem sua memória refrescada: se em Sião está o templo do Senhor, é este Senhor quem ouvirá a minha voz! Assim, declara no versículo 2:

"O meu socorro vem do Senhor, que fez o céu e a terra" (Sl 121.2)

A certeza de que Deus existe e cuida da gente é o combustível que nos faz prosseguir a cada dia, na confiança de que é dEle que vem o nosso socorro. Essa segurança nos impulsiona a orar a Deus, buscando-o de todo coração. Quem já experimentou a resposta de Deus sabe que pode clamar a Ele de novo e de novo, porque Ele se importa e ouve; ainda que nenhuma pessoa ou santo escute a sua voz, Deus escuta, porque se importa com você:

"Ele não permitirá que os seus pés vacilem; não dormitará aquele que guarda você. É certo que não dormita, nem dorme o guarda de Israel. O Senhor é quem guarda você; o Senhor é a sombra à sua direita." (Sl 121.3-5)

O cuidado de Deus por nós manifesta-se nos mínimos detalhes: fornecendo resposta, trocando choro por riso, abastecendo o que falta, sendo sombra nos desertos da vida. Ele é tanto o guarda de Israel, ou seja, da coletividade, quanto Aquele que guarda a sua vida, em particular.

"O Senhor guardará você de todo mal; guardará a sua alma. O Senhor guardará a sua entrada, desde agora e para sempre." (Sl 121.7-8)

A experiência de se sentir sozinho é bem dura. Clamar sem obter resposta causa ainda mais dor e intensifica o sentimento de solidão. Deixei de rezar é o primeiro e o penúltimo verso do poema de Mia Couto, reiterando que o eu lírico não mudou de opinião. Quanto a você, minha oração é que o Espírito Santo alcance sua mente no ponto em que este texto não consegue chegar e que Ele reitere em você a certeza de que Deus ouve sua oração. Não deixe de orar. Ele te ouve.


Entre a alegria e a tristeza

 

"A vida é mais tempo
alegre do que triste. Melhor é ser."
(Adélia Prado)

(12/09/2023)

Achei bem otimistas os versos de Adélia Prado, mas desconfio que, talvez, muitos considerem que eles sirvam mais ao universo poético do que à vida real que se constrói a cada instante. E não há problema algum nisso; afinal, a poesia, a literatura em geral, na verdade, tem por princípio ser uma representação da vida, mas sem a obrigatoriedade de manter uma fidedignidade com ela. Usando linguagem metafórica, criatividade e estilos diversos, a literatura transmite mensagens em que a plurissignificação e a imitação se completam, sem, no entanto, deixar que a arte em si seja manifesta.

Mas voltemos à afirmação de que a vida é mais tempo alegre do que triste. Minha desconfiança de que não haja unanimidade de concordância com essa sentença dá-se pelo fato de que tendemos, como humanos que somos, a considerar com destaque o que de ruim ou triste nos acontece ou acontece aos outros. Sob a justificativa de que desgraça pouca é bobagem, seguimos buscando - e encontrando - motivos para ressentir-se ou reclamar, lamentar ou se chatear, entristecer-se ou sentar e chorar amplificando, assim, as situações da vida, especialmente as que fujam do padrão "tempo alegre". É mais fácil, afinal, enfatizar os deslizes e as faltas do que valorizar as alegrias imensas ou pequeninas que compõem nosso cotidiano.

O que será, porém, que a Bíblia fala sobre isso?

Em primeiro lugar, aprendemos, na Escritura, que "o choro pode durar uma noite, mas a alegria vem pela manhã" (Sl 30.5), o que nos aponta para duas verdades: haverá choro e noites, assim como haverá ausência de choro e manhãs. Metaforicamente, a noite nos remete a final e, consequentemente, a cansaço, desânimo, fraqueza. Nesse cenário, o choro, por vezes, aparece até mesmo como uma válvula de escape para as pressões do dia. Por outro lado, a manhã nos remete à renovação, misericórdia renovada, ânimo recuperado, elementos que se ligam mais facilmente à alegria. Fato, porém, é que ambos os períodos compõem as nossas vidas. Assim como haverá manhãs e noites, sorrisos e choros nos acompanharão. Ainda nesse campo semântico de alegria e choro, o salmo 126, em seu versículo 5 assim nos anuncia: "Aqueles que semeiam com lágrimas, com cantos de alegria colherão", mais uma vez trazendo um ensinamento sobre a alegria que sucede a tristeza, esperançando nossas vidas mesmo nos momentos duros de plantio, de choro noturno ou de tristeza sem medida.

Em segundo lugar, a Bíblia nos ensina que devemos manter o coração não angustiado, ou seja, tranquilo, pois cremos em Deus e em Jesus (Jo 14.1). Ele, que é a nossa paz (Sl 4.8), tira toda perturbação de nosso coração, transformando tristeza em alegria (Jo 16.20). Podemos até não ver ou contabilizar, mas, certamente se o fizéssemos, perceberíamos, surpresos, o quanto Deus faz e fez por nós, e isso se constitui um grandioso motivo pelo qual podemos agradecer ao Pai e nos alegrar nEle. Perceber as bênçãos de Deus em lugar de privilegiar o que nos ocorre de mau certamente nos tornará pessoas mais felizes e de corações tranquilos, porque seremos, também, mais gratas. Além disso, vale lembrar que "tudo tem seu tempo determinado" (EC 3.1), o que nos remete à providência de Deus que a tudo governa e conduz de modo a que Sua vontade soberana se cumpra. Ninguém sofre em excesso ou se alegra infinitamente; há tempo para tudo, pois o Senhor do tempo a tudo governa.

O Evangelho nos convida a viver de forma equilibrada, pautando nossa existência na bússola que é a Palavra de Deus. Em tempos alegres ou tristes, durante as noites frias ou as manhãs de sol, diante de alegres gargalhadas ou compulsivos choros, Deus está conosco suprindo, guardando, guiando, ensinando.

Apenas confie.

Dependência e Vida

 

"E vamos acreditar.
Na inteira liberdade
Que é a ilusão que agora
Nos torna iguais aos deuses".
(Ricardo Reis)

(07/09/2023)

Em mil oitocentos e vinte e dois, no dia sete de setembro e às margens do riacho Ipiranga, em São Paulo, a história conta que D. Pedro declarou a independência brasileira. Com o brado "Independência ou morte!", o príncipe decreta, enfim, a autonomia do Brasil em relação à nação portuguesa. Esse episódio é por todos conhecido e repetido ao longo dos anos em nossas classes escolares. Mas gostaria de pensar, a partir dele, nos conceitos de independência e dependência, morte e vida e, claro, a relação desses termos com a Escritura.

Inicialmente, é essencial destacar que, em lugar da escolha entre independência ou morte, na Escritura, conhecemos a parceria dependência e vida, pois o evangelho nos convida a uma vida de dependência a Deus e condiciona essa dependência à vida abundante nEle, numa relação de causa e efeito. Depender, no entanto, não é tarefa simples. Pense em alguém que, debilitado fisicamente, torna-se incapaz de realizar suas próprias tarefas, não conseguindo, sequer, executar, sozinho, suas necessidades básicas. Difícil, não? A vulnerabilidade de quem não tem controle sobre si mesmo ou sobre suas funções é, no mínimo, assustadora. Mas, acredite, esse é o convite de Deus para nós: que sejamos dependentes dEle, que estejamos vulneráveis em sua presença, que precisemos, desesperadamente, dEle em nossas vidas, assim como uma plantinha recém semeada precisa de sol, água e cuidados para prosperar.]

Nesse par dependência-vida embute-se o fato de que abriremos mão de nós mesmos para priorizar Deus em todos os âmbitos do nosso viver. Esta é a vida que o evangelho nos convida a levar: na dependência de Deus, de Sua graça e misericórdia e vivendo, abundantemente, a vida que Jesus é. Ele, que também é o Caminho e a Verdade (Jo 14.6), convida-nos a viver na dependência dEle, e isso significa negar o autocontrole de nossas vidas, submetendo a Ele nossas vontades e expectativas; tomar, a cada dia, a própria cruz, compreendendo que assumir esse compromisso com Ele implica trilhar no caminho da rejeição e mesmo da morte, como o Mestre; e seguir a Jesus, aprendendo seus ensinamentos e desenvolvendo seu caráter todos os dias. Uma dependência que gera vida, e vida em abundância, mas que implica na mortificação das obras da carne para que, em nós, frutifique o fruto do Espírito (Gl 5.16-23).

Mas… e os versos de Ricardo Reis, um dos homônimos do poeta Fernando Pessoa, que abrem o texto de hoje? Bem, por mais inteira que seja a liberdade, ela não nos torna deuses. Em Cristo, a liberdade é concreta e não uma ilusão e, em lugar de nos exaltar como deuses, nos rebaixa à humilíssima condição de servos. A Bíblia afirma, no entanto, que Cristo nos chamou para a liberdade (Gl 5.1), então essa dependência não é uma relação tóxica ou maléfica para nós. O paradoxo do evangelho é que, sendo dependentes, somos, também, livres; estando enlaçados a Cristo, somos profundamente amados porque esses laços que nos prendem são, essencialmente, laços de amor (Os 11.4). Vivemos em dependência e isso não nos aprisiona, mas liberta. Buscar os preceitos de Deus, como anunciou o salmista, nos permite andar, verdadeira e vivamente, em liberdade (Sl 119.45).

Que, firmadas na Palavra, vivamos e anunciemos, hoje e todos os dias, a dependência e a vida que Jesus nos oferece.


Deus conosco, Deus comigo.

 “E agora, José?” (Carlos Drummond de Andrade) Já se sentiu sozinha? Eu já e mais de uma vez. Dependendo da situação em que nos encontremos,...